O trem que sai de Cuzco para Aguas Calientes, leva mais ou menos cinco a seis horas em seu percurso e oferece um serviço bem inferior ao preço que cobra. Apesar disso, a viagem é linda e passa por algumas estações, margeando vilarejos e alguns sítios arqueológicos. Os Andes acompanham o circuito que o trem faz e em muitos trechos pode-se avistar os cumes cobertos de neve.
Aguas Calientes é um pequeno lugarejo com três ou quatro ruas principais, uma praça e visitantes do mundo inteiro. O trem passa no meio da pequena cidade, tangenciando perigosamente as barracas de artesanato, ameaçando a integridade física dos comerciantes e dos turistas desavisados.
Possui uma população local voltada para o turismo, e que inclui em seu roteiro as famosas termas medicinais que atraem pessoas dos mais variados cantos do mundo para tratamento de saúde. Na verdade, as termas públicas, de propriedade do município de Aguas Calientes, são muito simples e compostas por cinco pequenas piscinas individuais com chuveiro e uma única piscina grande onde se concentra a maior parte das pessoas. A higiene é quase nenhuma e as águas são trocadas no final do dia, o que pode vir a comprometer a qualidade dos banhos termais.
A estadia em Aguas Calientes é cara, pois os preços são três vezes mais elevados que os de Cuzco. O motivo é que a companhia férrea, que é privada, cobra uma exorbitância dos comerciantes para transportar as mercadorias para lá. Por exemplo, uma garrafa de um litro e meio de água mineral custa um sole e cinqüenta em Cuzco e quatro soles em Aguas Calientes.
Além de ser um ponto de partida para Machu Picchu, Aguas Calientes é importante também pela sua vida noturna, pelos restaurantes requintados, por suas características geográficas, sua beleza natural e por concentrar uma população itinerante ricamente composta por pessoas de várias nacionalidades.
O caminho de Aguas Calientes para Machu Picchu pode ser feito de ônibus, mas também pode ser feito a pé, margeando o rio, e aonde se chega a uma escadaria íngreme, tortuosa, no meio de uma floresta de aspecto tropical, que se eleva uns 500 metros acima de Aguas Calientes. O caminho de ônibus é rápido e segue por uma estrada de terra batida bem conservada. O caminho pela escadaria, inclui alguns mosquitos, cansaço pela subida íngreme, a má conservação das indicações e das setas, e ainda a possibilidade de algum acidente, mesmo que pequeno, já que é necessário algum preparo físico. A caminhada leva em torno de uma hora e meia a duas. E o ônibus faz o percurso em vinte minutos.


A escadaria do caminho para Machu Picchu. As setas apagadas do caminho, o único sinal dentro da floresta
Machu Picchu
Em Machu Picchu, após comprar-se a valiosa entrada, desnuda-se para os visitantes todo um universo que parece vivo, recém-abandonado, onde se pode encontrar muitos restos de uma civilização que ainda habita o Peru, mesmo que não o saiba. Machu Picchu é a história atual dos sobreviventes. É o templo sagrado das sacerdotisas, o encontro dos Andes com os Andes, dos homens com os deuses em sua viagem cósmica. Nada lá é exagerado, a não ser a exuberante cordilheira que se agiganta primeiro em quatro imensas montanhas, da qual Machu Picchu faz parte. Logo mais adiante, em torno dessas montanhas, mais quatro rodeiam o despenhadeiro, formando um muro rochoso impenetrável. E finalmente ao redor dessas oito montanhas, mais nove abraçam o céu, sinuosas e silenciosas, encerrando quem sabe o mistério feminino dos espíritos que habitam cada uma delas. Para os Incas, o espírito das montanhas é feminino, assim como o espírito da terra, a quem eles chamam de Pacha Mama, e para quem eles oferecem as folhas de coca.
Para alguns estudiosos, Machu Picchu era a morada das acclas - virgens do sol - meninas selecionadas ainda pequenas, levando-se em conta suas qualidades físicas e morais. Essa conclusão baseia-se no fato de que 80% dos corpos mumificados e encontrados nas escavações eram de mulheres. A acllahuasi, Casa das Escolhidas, era um lugar onde as jovens ficavam enclausuradas e recebiam educação refinada. Havia as acllas do Inca, com finalidade estatais e a acllas do Sol, com finalidade religiosa. Machu Picchu parece ter sido um local de recolhimento superior, especial para o apuro do espírito, do físico, da arte e dos sentimentos elevados.
A cidade cobre uma área de 700 metros de extensão de norte a sul e 500 metros de largura, levando-se no mínimo um dia para conhecê-la. Divide-se em três setores: um agrícola, um urbano e um religioso, com santuários, praça de oferendas, corredor para meditação e ainda mirantes para a observação dos astros, relógios cósmicos e bússolas precisas. O centro urbano é composto por doze bairros e 216 prédios entre moradias, templos, palácios e oficinas. Lá dentro sente-se a força de um outro centro, um outro cuzco, ou outro umbigo dentro de Cuzco, um outro nível da gravidade terrestre, que torna o ar mais leve e mais arejado para quem sobe e alcança seu pico mais alto.
O caminho dos homens começa em Aguas Calientes e segue o caminho que os incas trilhavam em seu desenvolvimento espiritual, para cima das montanhas. Hoje esse caminho é trilhado também por homens e mulheres que não sabem sequer porque trilham. Um pouco pela moda, talvez, um pouco pela sensação de estarem fazendo alguma coisa por si mesmos, um pouco pelo resgate das almas que perderam sua identidade ali, um pouco porque são turistas e desbravadores, porque gostam das aventuras que possam surgir no caminho. O caminho inca, o caminho dos homens, o caminho atual dos turistas sempre provocou nos viajantes uma aventura para além do estado condicionado a que estão acostumados. Importa nessa viagem existencial, o significado que será acrescentado em suas vidas, e a mudança que Machu Picchu poderá provocar apenas permanecendo inalterável através dos tempos, proporcionando ainda hoje um contato com os mistérios que se encerram dentro de cada um.
Machu Picchu tem o caráter dos sonhos, a mesma matéria prima, soberba e inalcançável, que se agiganta diante dos nossos olhos semi-despertos, como se fosse o inconsciente da humanidade, algo que tangenciamos sem saber exatamente o verdadeiro significado. É a busca ancestral do mais íntimo que o ser humano carrega dentro de si, e que desconhece, esse selvagem que só será divinizado se houver compreensão do processo de sua subida lenta e progressiva ao patamar dos deuses.
Continua – O Caminho dos Deuses